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Ofertas Públicas vs. Colocações Privadas de Valores Mobiliários no Brasil: o que muda na prática

Ofertas Públicas vs. Colocações Privadas de Valores Mobiliários no Brasil: o que muda na prática

As captações via emissão de valores mobiliários no mercado de capitais brasileiro podem seguir dois caminhos regulatórios distintos: as ofertas públicas, submetidas ao regime e à supervisão da CVM, e as colocações privadas, conduzidas fora desse regime. Embora coexistam e se complementem no financiamento corporativo, os dois modelos apresentam fundamentos jurídicos, obrigações, custos, alcance e efeitos de mercado significativamente diferentes.

 

Este artigo descreve, de forma objetiva e acessível, as principais distinções, requisitos e implicações de cada modalidade, com ênfase no contexto normativo brasileiro contemporâneo.

 

Conceitos fundamentais e bases legais

 

A oferta pública é definida a partir de sua comunicação ao mercado. A legislação e a regulamentação caracterizam como pública a distribuição que utiliza instrumentos ou práticas aptas a alcançar público indeterminado, como prospectos, anúncios, procura ativa de investidores por meio de intermediários ou o uso de canais de comunicação de amplo acesso. No plano regulatório, a Resolução CVM 160 delimita “ato de comunicação” que, pelo conteúdo e contexto, busca despertar interesse ou prospectar investidores para determinado valor mobiliário, independentemente do meio utilizado.

 

Por sua vez, a colocação privada ocorre fora do regime das ofertas públicas. Nela, não há publicidade ampla nem esforços de captação generalizados; os investidores são previamente identificados e a negociação é direta, bilateral ou restrita, caracterizando uma relação individualizada. É fundamental distinguir esse conceito dos chamados safe harbors previstos na Resolução CVM 160, que elencam hipóteses específicas de ofertas que, por suas características, não se submetem ao regime da Resolução, sem que isso as converta automaticamente em colocações privadas. Também é distinta a categoria das ofertas públicas destinadas a um público-alvo limitado a perfis regulatórios definidos (por exemplo, investidores profissionais e qualificados) e cuja forma de prospecção é restrita. Apesar do alcance e dos esforços limitados, tais ofertas continuam sendo ofertas públicas e sujeitas ao respectivo regime regulatório específico, conforme a orientação da CVM.

 

O princípio do full disclosure e a lógica do registro

 

O regime brasileiro é estruturado pelo princípio do full disclosure, que visa reduzir a assimetria informacional entre emissores e investidores e, com isso, proteger o investidor e a integridade do mercado. Na prática, isso se traduz na obrigação de disponibilizar informações suficientes, verdadeiras, precisas, consistentes e atualizadas a respeito do emissor, do valor mobiliário e da própria oferta, de modo a permitir a tomada de decisão informada.

 

Para operacionalizar esse princípio, o registro da distribuição perante a CVM atua como instrumento de formalização e controle do processo informacional. O procedimento de registro exige a apresentação e divulgação de documentos de oferta e dados econômico-financeiros do emissor compatíveis com o tipo de valor mobiliário e o público-alvo. No tocante à responsabilidade, destaca-se o regime de imputação objetiva ao ofertante e a responsabilidade subjetiva da instituição intermediária líder por falta de diligência ou omissão.

 

Quando não há captação via uma oferta pública de distribuição de valores mobiliários, afasta-se a competência regulatória da CVM sobre a distribuição em si. Parte-se, nessas operações privadas, da premissa de proximidade entre captador e investidor e da disponibilidade direta das informações necessárias à avaliação do investimento, sem a mediação do processo de registro e de disclosure próprio da oferta pública.

 

Registro, negociação e infraestrutura de mercado

 

Após a Resolução CVM 160, toda oferta destinada à distribuição pública deve ser registrada na CVM, ressalvadas as hipóteses de safe harbor previstas no art. 8º. Existem ritos de registro distintos, automático e ordinário, cuja aplicação depende do tipo de oferta, do valor mobiliário e do perfil do emissor, com diferenças quanto ao momento de atuação da CVM, cronograma e nível de disclosure requerido.

 

No que tange à infraestrutura de negociação, as ofertas públicas exigem admissão do valor mobiliário na B3 para distribuição e negociação, usualmente na modalidade de depósito. Nas colocações privadas, não há essa obrigatoriedade; emissor e investidor podem, se desejarem, proceder à admissão na modalidade de registro, sem que isso converta a operação em oferta pública.

 

Intermediários, deveres e vedações

 

As ofertas públicas devem contar com ao menos um coordenador devidamente registrado, nos termos das Resoluções CVM 160 e 161. O coordenador possui deveres que se articulam com o full disclosure e a adequação ao investidor, incluindo: (i) a diligência reforçada sobre a veracidade, suficiência e consistência das informações divulgadas; (ii) a divulgação adequada da oferta e de eventuais conflitos de interesse; (iii) a verificação do perfil e suitability dos investidores; (iv) o zelo com linguagem e materiais de comunicação proporcionais à complexidade da oferta e ao nível de sofisticação do público; (v) a manutenção organizada da documentação; e (vi) o cuidado para que a alocação não privilegie indevidamente pessoas vinculadas.

 

Entre as vedações, destacam-se a de assegurar ou sugerir garantia de resultados ou isenção de risco, bem como a de realizar projeções de rentabilidade em desconformidade com os documentos da oferta.

 

Nas colocações privadas, em regra, não há obrigatoriedade de contratação de coordenador, abrindo espaço para negociações diretas entre emissor e investidor, o que aumenta a flexibilidade, mas desloca para as partes a organização do processo e a diligência informacional.

 

Agente fiduciário em emissões de dívida

 

Nas ofertas públicas de valores mobiliários de dívida, a contratação de agente fiduciário é obrigatória, conforme regida pela Resolução CVM 17. Trata-se de uma instituição financeira autorizada a atuar como representante da comunhão de investidores daquele valor mobiliário, com deveres de fiscalização e proteção dos interesses coletivos. Em colocações privadas, a contratação não é exigida e o investidor pode comparecer diretamente aos instrumentos de emissão; todavia, sem agente fiduciário, o título não será elegível à negociação no mercado secundário da B3, o que impacta sua liquidez.

 

Jurisprudência e interpretação regulatória: o caso das Ofertas com Esforços Restritos

 

A prática de mercado em torno das ofertas com esforços restritos motivou uma discussão relevante no âmbito da CVM. Em consulta da Superintendência de Registro de Valores Mobiliários (SRE) [1], foram apresentadas preocupações sobre operações estruturadas sob o rito restrito com mínimo ou nenhum esforço de colocação, direcionadas a um único investidor, e seus impactos estatísticos, de preços, de transparência e potenciais conflitos de interesse entre tesouraria e underwriting.

 

No julgamento, o Colegiado da CVM salientou a instrumentalidade dos conceitos de “valor mobiliário” e “oferta pública”: são ferramentas para definir o perímetro de regulação da CVM com foco na proteção aplicável a ofertas públicas, não devendo abranger operações genuinamente privadas. Reafirmou-se que operações que sigam o rito de oferta pública são públicas para fins regulatórios, inclusive quando a motivação seja viabilizar revenda e liquidez no mercado secundário, ainda que não haja captação junto a público amplo. A decisão afastou a suposição de que as ofertas restritas, por si, resultariam em aumento de custos, distorções de preços ou prejuízos ao desenvolvimento do mercado, enfatizando que abusos devem ser coibidos casuisticamente, sem presunção generalizada de má-fé.

 

A decisão também abordou a interpretação de normas do CMN, destacando que a exigência de destinação à subscrição pública para participação de instituições financeiras deve harmonizar-se com o entendimento da CVM sobre o uso do regime público, mesmo na ausência de esforço efetivo de distribuição. Em matéria tributária, assentou-se que a alíquota zero de IOF não se vincula ao caráter público ou privado da oferta, mas à natureza da operação, prevenindo a sobreposição de incidências entre crédito e valores mobiliários.

 

Conclusivamente, o Colegiado reconheceu que emissões sem esforço real de captação junto a público indeterminado podem, voluntariamente, adotar o rito das ofertas públicas, quando isso fizer sentido para a estruturação e a liquidez do instrumento, sem que esse uso distorça o diagnóstico do mercado.

 

Considerações finais

 

A decisão entre oferta pública e colocação privada deve partir de uma avaliação criteriosa do objetivo da captação, do perfil do investidor, do apetite por liquidez e visibilidade, e do custo regulatório. O regime público, ancorado no full disclosure, oferece amplitude de acesso, infraestrutura e liquidez, ao custo de maior formalismo e supervisão. A colocação privada, por sua vez, privilegia agilidade, confidencialidade e flexibilidade, com alcance e liquidez mais restritos e maior ênfase na relação direta entre as partes.

 

A evolução regulatória recente, aliada à jurisprudência administrativa, confere previsibilidade à convivência de ambos os regimes, permitindo que emissores e investidores escolham, de forma informada, a arquitetura regulatória mais eficiente para cada operação, inclusive por meio de soluções híbridas que combinem o melhor de cada modalidade sem abrir mão da proteção do investidor e da integridade do mercado.

 

[1] PROCS. SEI 19957.007194/2017-50 e 19957.007197/2017-93, conforme decisão do Colegiado da CVM de 23 de fevereiro de 2021.

 

 

Se você tiver alguma dúvida ou quiser continuar a conversa acerca de qualquer dos aspectos aqui debatidos, entre em contato conosco por meio do e-mail comunicacao@pinheiroguimaraes.com.br.


 

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