Publicações e Eventos

Contratos Agrários no Brasil: Aspectos Gerais e Desafios Contemporâneos

Contratos Agrários no Brasil Aspectos Gerais e Desafios Contemporâneos

O direito agrário brasileiro tem origem em um contexto histórico caracterizado por profundas desigualdades sociais. Estruturado com o propósito de assegurar a proteção do trabalhador rural, frequentemente considerado a parte vulnerável nas relações jurídicas, e de promover o uso racional e produtivo da terra, esse ramo jurídico foi concebido com marcante vocação social.

 

Contudo, nas últimas décadas, a realidade do campo transformou-se de maneira substancial. A crescente sofisticação das relações contratuais no agronegócio, aliada à presença cada vez mais dominante de grandes grupos econômicos no setor, tem demandado uma revisão crítica dos modelos normativos tradicionalmente aplicáveis à exploração dos imóveis rurais.

 

Com efeito, os contratos agrários, antes utilizados primordialmente para disciplinar a posse produtiva da terra entre pequenos produtores e proprietários, passaram a exercer função central em operações estruturadas. Cooperativas, agroindústrias, fundos de investimento e conglomerados empresariais utilizam esses instrumentos não apenas como mecanismos de viabilização da atividade rural, mas também como ferramentas de gestão patrimonial e de alavancagem financeira.

 

O direito agrário contemporâneo, portanto, encontra-se diante do desafio de conciliar sua função protetiva tradicional com as novas exigências de um mercado altamente dinâmico e capitalizado.

 

Raízes históricas e consolidação normativa

 

As origens do direito agrário brasileiro remontam ao regime de sesmarias, adotado ainda no período colonial. À época, já se observava a concepção de que a terra deveria cumprir uma função produtiva: a concessão era condicionada ao efetivo cultivo da gleba pelo beneficiário, sob pena de revogação. Essa lógica, ainda que rudimentar, refletia uma preocupação embrionária com o aproveitamento econômico da propriedade.

 

Esse princípio sofreu alterações com a promulgação da Lei de Terras de 1850, que instituiu a compra como forma predominante de aquisição fundiária. O novo modelo limitou drasticamente o acesso à terra por parte das camadas menos favorecidas da população, resultando na consolidação de uma estrutura fundiária concentrada, marcada frequentemente pelo uso ineficiente das terras disponíveis.

 

O Código Civil de 1916, por sua vez, tratou dos contratos vinculados ao meio rural de maneira genérica, disciplinando figuras como a parceria agrícola e a locação de imóveis rústicos, sem, contudo, atentar-se para a assimetria das relações contratuais ou para os objetivos sociais que permeiam a política agrária.

 

O grande marco normativo, no entanto, surgiu apenas em 1964, com a edição do Estatuto da Terra (Lei n.º 4.504/1964). Promulgada em um contexto de crescente mobilização social no campo, a nova legislação instituiu os princípios fundamentais do direito agrário brasileiro: função social da propriedade, justiça social no meio rural e racionalidade produtiva. O Decreto n.º 59.566/1966, que regulamentou o Estatuto, introduziu cláusulas obrigatórias nos contratos de arrendamento e de parceria, impondo limites à autonomia privada em aspectos essenciais como prazos mínimos, remuneração e direito de preferência.

 

A esse conjunto normativo somaram-se a Emenda Constitucional n.º 10/1964, que concentrou na União a competência legislativa sobre matéria agrária, e a Lei n.º 4.947/1966, que conferiu caráter cogente às normas agrárias, mesmo nos contratos celebrados entre particulares. Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 consolidou esse processo ao conferir status constitucional à função social da propriedade rural, além de prever instrumentos como a desapropriação por interesse social, a progressividade do Imposto Territorial Rural e a criação de varas especializadas em matéria agrária.

 

Contratos agrários típicos

 

Os contratos agrários são instrumentos jurídicos voltados à regulamentação da utilização produtiva de imóveis rurais por terceiros. No ordenamento jurídico brasileiro, as figuras centrais desses contratos típicos são o arrendamento e a parceria rural, Ambos são disciplinados pelo Estatuto da Terra e pelo Decreto n.º 59.566/1966, possuindo características próprias, finalidades distintas e limitações jurídicas impostas por normas de ordem pública.

 

O arrendamento rural, previsto no artigo 3º do Decreto n.º 59.566/1966, é o contrato pelo qual o arrendador cede ao arrendatário, por tempo determinado ou não, o uso e o gozo de imóvel rural para exploração agrária, mediante remuneração fixada em dinheiro e paga em moeda ou em produtos, desde que convertidos na data do pagamento. Os riscos da atividade recaem sobre o arrendatário, que assume integralmente a condução da produção. O valor do arrendamento é limitado por lei: até 15% do valor cadastral do imóvel, podendo chegar a 30% em áreas de exploração mais rentáveis.

 

Já a parceria rural, prevista no artigo 4º do mesmo decreto, é o contrato pelo qual o parceiro-outorgante cede o uso do imóvel rural para exploração conjunta com o parceiro-outorgado, mediante divisão dos frutos ou lucros. Há partilha de riscos e resultados, e não há remuneração fixa. Os percentuais de partilha devem respeitar os limites legais e as proporções de contribuição de cada parte. A posse é compartilhada entre os parceiros, e o parceiro-outorgante mantém poder de fiscalização, pois participa dos resultados. Por exigir alto grau de confiança e colaboração entre as partes, a doutrina dominante classifica a parceria como uma forma atípica de sociedade agrária, embora sem personalidade jurídica.

 

Evolução do direito agrário

 

No cenário jurídico contemporâneo, o direito agrário é reconhecido como um ramo autônomo, dotado de princípios, objetivos e fontes próprios, embora mantenha diálogo permanente com outros ramos do direito, como o civil, ambiental e empresarial. Os contratos agrários, embora situados no âmbito do direito privado e fundados na autonomia da vontade, estão sujeitos a um regime jurídico que impõe limites à liberdade contratual, sobretudo quando estão em jogo o interesse público e coletivo.

 

Como anteriormente exposto, o panorama do meio rural brasileiro passou por intensas transformações. Relações contratuais antes marcadas pela disparidade entre pequenos agricultores e proprietários locais deram lugar a negociações entre agentes econômicos sofisticados. Nesse novo contexto, a aplicação literal e indiscriminada das normas protetivas originalmente concebidas para relações assimétricas revela-se, por vezes, inadequada ou até contraproducente.

 

A legislação vigente, centrada no Estatuto da Terra e em seu decreto regulamentador, mostra-se, em diversas situações, incompatível com a complexidade das transações atualmente realizadas no setor rural. Diante disso, ainda que o Código Civil continue a exercer função supletiva, tornou-se necessário harmonizar os princípios gerais do direito contratual com as particularidades das partes envolvidas, o tipo de exploração objeto do contrato e os objetivos econômicos da operação.

 

Nesse contexto, a jurisprudência tem desempenhado papel fundamental. O Superior Tribunal de Justiça e os Tribunais de Justiça estaduais têm, em casos específicos, relativizado a aplicação de normas cogentes em situações envolvendo contratantes com capacidade econômica equivalente. Além da jurisprudência, a doutrina, os costumes e a analogia têm ganhado relevância como fontes de integração normativa. A doutrina, por sua agilidade em acompanhar as transformações do setor, tem antecipado debates e proposto soluções para lacunas legais. Os costumes, por sua vez, refletem a prática reiterada no campo, que, em determinadas regiões, assumem caráter quase normativo. Já a analogia permite importar institutos e princípios de outros ramos do direito para suprir omissões e dar respostas adequadas às demandas do setor.

 

No plano prático, a crescente utilização de contratos atípicos evidencia a busca por maior flexibilidade na estruturação das relações jurídicas no campo, que, por não estarem, em tese, subordinados às regras cogentes do Estatuto da Terra, oferecem maior margem de negociação e adequação às necessidades das partes. Nesse cenário, a atuação do profissional do direito torna-se determinante não apenas para assegurar a conformidade legal dos instrumentos contratuais, mas também no desenvolvimento e estruturação de operações que garantam segurança jurídica e eficiência econômica às partes.

 

Autonomia contratual e intervenção estatal

 

A evolução interpretativa do direito agrário acompanha, em grande medida, as diretrizes da chamada Lei da Liberdade Econômica. A introdução do artigo 421-A no Código Civil reforçou a presunção de simetria nos contratos firmados entre partes que se encontram em posição de equilíbrio econômico e técnico. A norma estabelece que, salvo demonstração de hipossuficiência, contratos paritários devem ser respeitados em sua integralidade, admitindo-se intervenção judicial apenas em hipóteses excepcionais.

 

Tal disposição tem relevância prática significativa, pois inibe interpretações excessivamente intervencionistas por parte do Poder Judiciário, as quais, em muitos casos, comprometem a previsibilidade das relações contratuais e desestimulam investimentos. Ainda assim, é importante destacar que a presunção de paridade é relativa e pode ser afastada em situações específicas e devidamente quando comprovado, por meio de provas documentais, testemunhais ou análise contextual, o desequilíbrio entre as partes.

 

A questão central, portanto, reside em encontrar o ponto de equilíbrio entre a autonomia privada e a necessidade de intervenção estatal para fins da proteção das partes vulneráveis. A relativização excessiva da força obrigatória dos contratos pode minar a confiança no ambiente de negócios, especialmente em setores como o agronegócio, que dependem de estabilidade e previsibilidade para o planejamento de longo prazo.

 

Conclusão

 

Embora ainda subsistam relações contratuais assimétricas no meio rural brasileiro, não se pode ignorar que uma parcela expressiva do setor opera em bases profissionais e tecnicamente estruturadas. Nesse sentido, não se propõe o abandono dos princípios protetivos que justificaram a promulgação do Estatuto da Terra, mas sim a necessidade de sua atualização e reinterpretação à luz da nova realidade agrária.

 

A consolidação de um novo marco legal, que preserve os valores constitucionais da função social da propriedade e da justiça agrária, mas que também ofereça maior flexibilidade para contratos entre partes equiparadas e com plena capacidade técnica e econômica, parece ser o caminho natural para o fortalecimento do setor.

 

Enquanto isso não ocorre, caberá à doutrina e à jurisprudência construir, com responsabilidade técnica e sensibilidade prática, as pontes entre o direito agrário tradicional e as demandas de um agronegócio moderno, capitalizado e globalizado. Em última análise, a segurança jurídica continua sendo o pilar fundamental para a atração de investimentos, a ampliação do crédito rural e o fortalecimento de cadeias produtivas sustentáveis.

Artigo elaborado por Paulo Accorsi Amaral, advogado na área de Imobiliário.

Se você tiver alguma dúvida ou quiser continuar a conversa acerca de qualquer dos aspectos aqui debatidos, entre em contato conosco por meio do e-mail comunicacao@pinheiroguimaraes.com.br.


   

Leia também:
 

 
Confira mais artigos e notícias, clicando aqui.
 
Mantenha-se atualizado com as últimas informações legislativas por meio do nosso Boletim Legislativo, disponível em nossa página oficial no LinkedIn. Para acessar, clique aqui.


Área Relacionada


Profissionais Relacionados

Limpar Ver Todos

Publicações Relacionadas

Artigos - 15/07/2024

Aspectos Gerais das Transações de Sale and Leaseback

Notícias - 21/05/2025

Georreferenciamento será obrigatório para todos os imóveis rurais

Notícias - 16/05/2025

BC publica resolução que permite a emissão de LCIs por financeiras

Notícias - 02/10/2024

CVM edita Novas Regras para os FIAGROs

Notícias - 02/02/2024

Resolução CMN n.º 5.118 estabelece novas regras aplicáveis a emissões de certificados de recebíveis imobiliários (CRI) e certificados de recebíveis do agronegócio (CRA)

Útimas Publicações

Artigos - 05/08/2025

Contratos Agrários no Brasil: Aspectos Gerais e Desafios Contemporâneos

Boletins - 04/08/2025

Boletim Legislativo #23

Notícias - 01/08/2025

CVM inicia consulta pública prevendo ajustes pontuais à Resolução CVM n.º 160

Artigos - 31/07/2025

Desafios na Estruturação de Joint Ventures

Notícias do Escritório - 30/07/2025

Pinheiro Guimarães comenta lei do Piauí sobre deságio em precatórios alimentar

Notícias - 24/07/2025

Lei n.º 15.177/2025 reforça a promoção de diversidade nos conselhos de administração

Client Alert - 18/07/2025

Publicada hoje nova decisão do Ministro Alexandre de Moraes afastando a cobrança retroativa do IOF, inicialmente prevista na decisão da última quarta-feira

Boletins - 11/07/2025

Boletim Legislativo #22

Mantenha-se atualizado com as principais notícias e artigos

Cadastre-se para receber nossas publicações:

Receba Nosso
Mailing